Memórias de uma diretora de escola em região vulnerável na Cidade do Rio de Janeiro

Livia de Fátima Conceição (Graduanda do Curso de Pedagogia-UFRJ)

Os bairros do Rio de Janeiro já tiveram diversos cenários. Bairros que um dia já foram moradas de nobres, hoje são denegados pelo poder público, convivendo com violência, falta de saneamento básico e outros direitos. Um exemplo é o bairro do Engenho da Rainha, que recebeu esse nome após a mudança da Rainha Carlota Joaquina para a região em 1810 e, no momento atual sofre com diversos descasos. No bairro, atualmente, há oito escolas, dentre elas públicas e privadas, de Educação Infantil até Ensino Médio. Porém, iremos relatar aqui as memórias de uma escola municipal que não está mais em funcionamento.

A escola, que atendia a Educação Infantil, foi fundada em cima de uma área que era utilizada como praça e campo de futebol pela comunidade do local. A exata nomenclatura usada pelos moradores para nomear a área é “Favela da Galinha” ou “Favelinha”, que é a região de casas e comércio construídas em fileira à beira de um rio e da Avenida Pastor Martin Luther King Júnior (antiga Automóvel Clube) e não consta dos registros da XIIª Região Administrativa (R.A.).

Nos anos de funcionamento desta escola, tinha-se uma entrada em forma de beco da avenida até o centro da favela, onde ficava a escola, mas, nos dias de hoje essa entrada está fechada com outras construções, dificultando o acesso. Ao pesquisar o endereço da escola (Praça 13 de Julho – Engenho da Rainha) em plataformas de pesquisa, como o Google Maps, não é possível acha-lo (como se o endereço nuca tivesse existido). Tampouco consegue-se visualizar a localização pelo Google Street – só se vê a fachada próxima a avenida. A única forma de ver o local foi através das imagens de satélite.

Ao pesquisar mais sobre a escola, não se encontra menções nos sites da Prefeitura, nem na Secretaria Municipal de Educação, nem imagens da localidade. O único documento encontrado que tem alguma menção é o Decreto Nº 28959 de 2008, que alterou as denominações e as designações das U.As (Unidades Administrativas) Casas da Criança da Secretaria Municipal de Educação – SME, se tornando Escola Municipal Engenho da Rainha.

Para sabermos mais sobre a história e a importância dessa escola vamos trazer o relato da professora aposentada Lucilene (nome fictício), 57, que foi diretora dessa Escola de 1993 até 2009. Em 1985, ela entrou para o município do Rio de Janeiro através de concurso público para P2, após ter se formado no Curso Normal. Posteriormente cursou Faculdade de Pedagogia, em 1989, e uma pós-graduação em Psicopedagogia, no início dos anos 2000, porém não finalizada. Grande parte de sua carreira foi como  professora de escola pública, atuando com Educação Infantil e Ensino Fundamental I, porém, após tantos anos em sala de aula, estava pensando em mudar para a área administrativa.

Sua chegada para trabalhar na Escola é um acontecimento um tanto curioso. De acordo com a professora, uma colega de trabalho havia sido chamada para ser Diretora Adjunta em nessa escola e estavam precisando de uma Professora Orientadora, e ela a indicou.

Chegando lá, com poucos dias de trabalho, houve um conflito de ordem pessoal e administrativa entre diretora e adjunta, e uma delas – não se sabe bem qual – foi pedir apoio à chefia da comunidade. Pouco tempo depois, a Diretora foi ameaçada e saiu da escola.

Nesse contexto, a adjunta se tornou diretora, e Lucilene, que era Professora Orientadora (PO), teve que se tornar adjunta. Entretanto, poucos dias depois, a nova diretora entrou em uma situação de desacordo com a comunidade e também foi expulsa. Com isso, a adjunta teve que assumir, e a nova PO se tornou a adjunta.

Tudo isso aconteceu em menos de um mês. De um dia para o outro eu me tornei diretora de uma Escola, dentro de uma comunidade!”, conta a professora.

Em seguida, Diretora e Adjunta formaram uma chapa e fizeram campanha no ano posterior, sendo reeleitas de 1994-2009, quando ela teve que se afastar do cargo e se aposentar devido ao segundo AVC (Acidente Vascular Cerebral).

Por ser uma área alto risco e perigo constante, muitas vezes, ela não sabia se entrariam para dar aula e ficariam até o fim do dia. A diretora relata que sempre buscaram fazer o melhor trabalho possível para aquelas crianças e a comunidade da Favela da Galinha. Os momentos de tensão e perigo eram muitos, como certa vez em que levaram as crianças ao Jardim Zoológico e, ao voltarem,  na entrada da escola, havia uma perseguição com tiros, e as professoras e diretora tiveram que jogar todas as crianças contra o muro e se abaixarem.

Diferente das gestões anteriores, a Diretora e sua Adjunta buscaram ter uma boa relação com a comunidade e com o poder paralelo que dominava o local.

“Eles respeitavam nosso trabalho, muitos tinham sido nossos alunos ou seus filhos eram. Quando entrávamos pelas ruelas, eles abaixavam as armas e nos cumprimentavam”, contou.

Apesar disso, algumas problemáticas aconteceram, como certa vez em que encontraram armas, munição e drogas na caixa de registro da água da escola. Como era dia de Conselho de Classe, a escola estava sem crianças, então a diretora avisou ao porta-voz da comunidade o que aconteceu, e em poucos minutos o chefe da boca apareceu na escola.

“Ele foi falar comigo, pediu desculpas e avisou que isso nunca mais iria acontecer – e não aconteceu. Eu só fiquei parada atrás da minha mesa, tremendo, lembrando que a poucos dias atrás esse homem tinha matado a esposa. Foi um momento que nunca esqueço, quando ele saiu minha servente veio correndo com um copo d’água com açúcar”.

Independentemente de todas as problemáticas, ela conta que era necessário se prender ao mundinho dentro dos muros da escola. Com o muro alto, que pediram para ser construído, não se via a praça, nem sua movimentação, aumentando a sensação de que estavam distantes daquela violência. Lembra, também, que o grupo de trabalho era muito bom, com isso conseguiram investir na escola, pintaram, colocaram brinquedos, montaram sala de leitura e faziam diversos passeios com eles. Todo ano, no dia das crianças, levava-os ao McDonald’s e no Natal fazia-se cestas básicas para as famílias e contratavam um Papai Noel para presentear as crianças.

Esses eram nossos momentos mais felizes”, relata.

Infelizmente, em 2010, após a saída desta Diretora,  ocorreram situações problemáticas com a comunidade, e, por fim, a coordenadoria geral considerou que “por bem” – palavras ouvidas pela antiga diretora – e pelo local ser muito perigoso, que a escola deveria ser fechada.

Atualmente, os muros da escola foram derrubados e o local se tornou uma espécie de depósito.